O copo está meio cheio ou meio vazio? Você pode ser otimista ou pessimista, entretanto, a realidade é que o copo não está nem uma coisa, nem a outra. Está no meio termo, mediano, medíocre.
Dia desses eu me peguei pensando sobre isso. Acho que tinha ouvido na TV que o governo ia dar dinheiro para os estudantes de ensino médio que concluísse os estudos, e li algo sobre jovens e idosos que teriam direito a passagem de ônibus interestaduais gratuita e descontos em ingressos para eventos culturais como teatro e cinema. E todos os benefícios não caberiam a mim. Eu já havia passado da idade que o benefício contemplava ou minha renda seria maior do que os que poderiam usufruir do benefício, coisas do tipo.
Me deu aquele sentimento de que na minha vez de jogar a vida adulta o jogo ficou nível hard. Em algum momento eu escrevi aqui sobre como eu sentia falta de ter uma paixão por algo ao ponto de saber tudo sobre aquele tópico, como eu era com Nárnia, por exemplo. Esse sentimento também voltou e misturou com o outro...
Me sinto medíocre. Sempre na média mas sem nenhum destaque. Não sou feio, não tenho nenhuma deformidade... mas também não sou bonito ao ponto de me sobressair aos olhos dos outros. Não sou completamente estúpido, mas também não sou brilhante. Não tenho uma habilidade especial, não toco um instrumento, não desenho ou pinto, não sei cantar e até mesmo na minha área não sou tão notável assim, faço o básico.
Nesse último ponto eu já me perdoei um pouco. Eu aprendi inglês sozinho, minha família não teve condições de pagar um curso pra mim. Não posso me comparar com algumas pessoas do meu trabalho, por exemplo, que são bem mais novas que eu mas tiveram acesso aos estudos de línguas na adolescência e também tiveram famílias com condições financeiras para que eles até viajassem para o exterior e, em alguns casos, até estudar fora. Na meritocracia tem gente que começa a corrida com quilômetros de vantagem e isso reflete no resto da vida.
Eu queria ser mais, queria fazer mais. Agora tenho dois empregos, alunos particulares e ainda pego alguns serviços por fora. No tempo livre que tenho não sobra energia física ou mental para fazer outras coisas. Até a leitura que eu estava quase conseguindo botar em dia desandou.
Lendo os textos do trabalho eu me deparei com essa crônica da Marina Colasanti:
Eu sei que a gente se acostuma. Mas não devia.
A gente se acostuma a morar em apartamentos de fundos e a não ter outra vista que não as janelas ao redor. E, porque não tem vista, logo se acostuma a não olhar para fora. E, porque não olha para fora, logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas. E, porque não abre as cortinas, logo se acostuma a acender mais cedo a luz. E, à medida que se acostuma, esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão.
A gente se acostuma a acordar de manhã sobressaltado porque está na hora. A tomar o café correndo porque está atrasado. A ler o jornal no ônibus porque não pode perder o tempo da viagem. A comer sanduíche porque não dá para almoçar. A sair do trabalho porque já é noite. A cochilar no ônibus porque está cansado. A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia.
A gente se acostuma a abrir o jornal e a ler sobre a guerra. E, aceitando a guerra, aceita os mortos e que haja números para os mortos. E, aceitando os números, aceita não acreditar nas negociações de paz. E, não acreditando nas negociações de paz, aceita ler todo dia da guerra, dos números, da longa duração.
A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir no telefone: hoje não posso ir. A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de volta. A ser ignorado quando precisava tanto ser visto.
A gente se acostuma a pagar por tudo o que deseja e o de que necessita. E a lutar para ganhar o dinheiro com que pagar. E a ganhar menos do que precisa. E a fazer fila para pagar. E a pagar mais do que as coisas valem. E a saber que cada vez pagar mais. E a procurar mais trabalho, para ganhar mais dinheiro, para ter com que pagar nas filas em que se cobra.
A gente se acostuma a andar na rua e ver cartazes. A abrir as revistas e ver anúncios. A ligar a televisão e assistir a comerciais. A ir ao cinema e engolir publicidade. A ser instigado, conduzido, desnorteado, lançado na infindável catarata dos produtos.
A gente se acostuma à poluição. Às salas fechadas de ar condicionado e cheiro de cigarro. À luz artificial de ligeiro tremor. Ao choque que os olhos levam na luz natural. Às bactérias da água potável. À contaminação da água do mar. À lenta morte dos rios. Se acostuma a não ouvir passarinho, a não ter galo de madrugada, a temer a hidrofobia dos cães, a não colher fruta no pé, a não ter sequer uma planta.
A gente se acostuma a coisas demais, para não sofrer. Em doses pequenas, tentando não perceber, vai afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá. Se o cinema está cheio, a gente senta na primeira fila e torce um pouco o pescoço. Se a praia está contaminada, a gente molha só os pés e sua no resto do corpo. Se o trabalho está duro, a gente se consola pensando no fim de semana. E se no fim de semana não há muito o que fazer a gente vai dormir cedo e ainda fica satisfeito porque tem sempre sono atrasado.
A gente se acostuma para não se ralar na aspereza, para preservar a pele. Se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para esquivar-se de faca e baioneta, para poupar o peito. A gente se acostuma para poupar a vida. Que aos poucos se gasta, e que, gasta de tanto acostumar, se perde de si mesma.
Eu, aos poucos, vou tentando não me acostumar... inclusive vou agora ler um pouco mais.