Anos atrás eu visitei o cemitério da cidade e os antigos túmulos da entrada em sua grande maioria mostrava o ano de falecimento como sendo 1918. Eu estive pesquisando sobre a minha árvore genealógica e já sabia que esse tinha sido o ano da pandemia de Gripe Espanhola, meu bisavô havia falecido em decorrência da doença. Na época eu me perguntava como seria viver durante a pandemia que vitimou tantos [estimasse que foi cerca de cem milhões!]. Acho que a imagem que eu tinha era de pinturas e filmes sobre a Peste Negra, talvez como no filme Nosferatu: Phantom der Nacht, com corpos pelas ruas. Hoje eu tenho uma noção de como foi, estou vivendo uma pandemia, e é menos chocante do que eu esperava. A gente se choca mais quando um grande acidente acontece de uma vez... com a pandemia os números vão se somando dia após dia. Começa pequeno a gente não dá importância. Quando os números já estão lá em cima, o cérebro humano não é capaz de processar tudo, números se tornam apenas números e não pessoas. A tragédia não consegue ser absorvida. Quando acontece um terremoto, tsunami ou um furacão devastador e toda uma cidade é destruída a gente consegue entender a tragédia porque acontece de uma vez.
Fiz todo esse preâmbulo pra fazer uma metáfora de algo que me incomoda a quatro anos. Depois que minha mãe morreu o que me incomoda e mais me deixa triste é ver a cidade mudando.
And these trains that I take, I saw fire
But now I've seen the city change in
Oh, so many ways, since the days of fire
Since the days of fire
São como pequenos terremotos localizados que destroem um pouquinho do que eu conheci e fez parte da minha história. É como se aos poucos o lugar que eu cresci fossem se tornando estranho pra mim. Começou com a construção de um prédio em um local onde toda a minha vida havia sido um terreno com as vigas emergindo da terra... - lembro de uma vez que choveu muito e formou poças em meio a vegetação rasteira e o lugar ficou igual aos Pântanos Mortos de O Senhor dos Anéis.
A Rua São Benedito que era cheia dos dois lados de lojas com produtos da China. Hoje em dia só resta um e uma procissão de portas fechadas com placas de "vende-se"; "aluga-se", lojas que nascem e morrem depois de um ano e, cada vez mais frequente, um terreno vazio, como um dente faltando numa boca, e que em breve vai ser preenchido por um estacionamento ou um prédio.
Durante a pandemia fiquei mais tempo em casa e não vi que a cidade continuava a sofrer pequenos furacões que iam derrubando as estruturas que eu conhecia. Esse mês uma casa aqui da esquina da minha rua havia desaparecido. Foi como se um dia a casa estivesse lá e no seguinte houvesse apenas um terreno aplainado de terra vermelha.
O mundo não para para quem quer que seja. Reclamo que Uberaba não muda, que a população é muito provinciana e retrógrada. E hoje me dói ver o "progresso": farmácias em todas as esquinas, restaurantes de comida oriental, açaís e incontáveis lojas de capas para celular. E eu já não reconheço a cidade e os prédios que um dia testemunharam meus passeios com minha mãe agora estão enterrados na memória.
Agora minha memória é um mapa para coisas ausentes: um sebo que visitei na infância quando fui à Feira d'Abadia. Uma bodega que vendia de tudo [na rua da escola Abadia] onde comprei um livro da Jane Austen com ovos de barata - livro que até hoje, após mais de uma década ainda não li; um brechó que parecia um labirinto cheio de todo tipo de velharia [desde eletrônicos antigos, xícaras avulsas e velas já queimadas] na Rua Arthur Machado... esse brechó é um mistério para mim e as vezes chego a pensar que ele só existiu em um sonho porque um dia estava lá, no seguinte quando voltei já não o encontrei.
A casa de meu avô foi vendida. Todas as lembranças que aquelas paredes continham agora são memórias. Só minhas. Não sei se tudo será demolido para dar lugar a um prédio moderno, mas aquele lugar não me pertence mais.
"Minha" casa também não me pertencerá em breve. Após a venda da casa do meu avô, meu pai decidiu comprar uma pra ele e eu não devo me mudar junto. Hora de ir para um lugar novo, recomeçar mais uma vez. Um novo terremoto vai acontecer.
P.S.: Ouvi dizer que a casa do meu avô já foi demolida. No lugar vai surgir um sobrado que vai ser um varejão...
Nenhum comentário:
Postar um comentário