segunda-feira, 23 de agosto de 2021

O Mapeador de Ausências

Anos atrás eu visitei o cemitério da cidade e os antigos túmulos da entrada em sua grande maioria mostrava o ano de falecimento como sendo 1918. Eu estive pesquisando sobre a minha árvore genealógica e já sabia que esse tinha sido o ano da pandemia de Gripe Espanhola, meu bisavô havia falecido em decorrência da doença. Na época eu me perguntava como seria viver durante a pandemia que vitimou tantos [estimasse que foi cerca de cem milhões!]. Acho que a imagem que eu tinha era de pinturas e filmes sobre a Peste Negra, talvez como no filme  Nosferatu: Phantom der Nacht, com corpos pelas ruas. Hoje eu tenho uma noção de como foi, estou vivendo uma pandemia, e é menos chocante do que eu esperava. A gente se choca mais quando um grande acidente acontece de uma vez... com a pandemia os números vão se somando dia após dia. Começa pequeno a gente não dá importância. Quando os números já estão lá em cima, o cérebro humano não é capaz de processar tudo, números se tornam apenas números e não pessoas. A tragédia não consegue ser absorvida. Quando acontece um terremoto, tsunami ou um furacão devastador e toda uma cidade é destruída a gente consegue entender a tragédia porque acontece de uma vez. 

Fiz todo esse preâmbulo pra fazer uma metáfora de algo que me incomoda a quatro anos. Depois que minha mãe morreu o que me incomoda e mais me deixa triste é ver a cidade mudando.

On these streets where I played
And these trains that I take, I saw fire
But now I've seen the city change in
Oh, so many ways, since the days of fire
Since the days of fire
- Days of Fire; Nitin Sawhney

São como pequenos terremotos localizados que destroem um pouquinho do que eu conheci e fez parte da minha história. É como se aos poucos o lugar que eu cresci fossem se tornando estranho pra mim. Começou com a construção de um prédio em um local onde toda a minha vida havia sido um terreno com as vigas emergindo da terra... - lembro de uma vez que choveu muito e formou poças em meio a vegetação rasteira e o lugar ficou igual aos Pântanos Mortos de O Senhor dos Anéis

A Rua São Benedito que era cheia dos dois lados de lojas com produtos da China. Hoje em dia só resta um e uma procissão de portas fechadas com placas de "vende-se"; "aluga-se", lojas que nascem e morrem depois de um ano e, cada vez mais frequente, um terreno vazio, como um dente faltando numa boca, e que em breve vai ser preenchido por um estacionamento ou um prédio.

Durante a pandemia fiquei mais tempo em casa e não vi que a cidade continuava a sofrer pequenos furacões que iam derrubando as estruturas que eu conhecia. Esse mês uma casa aqui da esquina da minha rua havia desaparecido. Foi como se um dia a casa estivesse lá e no seguinte houvesse apenas um terreno aplainado de terra vermelha. 

O mundo não para para quem quer que seja. Reclamo que Uberaba não muda, que a população é muito provinciana e retrógrada. E hoje me dói ver o "progresso": farmácias em todas as esquinas, restaurantes de comida oriental, açaís e incontáveis lojas de capas para celular. E eu já não reconheço a cidade e os prédios que um dia testemunharam meus passeios com minha mãe agora estão enterrados na memória. 

Agora minha memória é um mapa para coisas ausentes: um sebo que visitei na infância quando fui à Feira d'Abadia. Uma bodega que vendia de tudo [na rua da escola Abadia] onde comprei um livro da Jane Austen com ovos de barata - livro que até hoje, após mais de uma década ainda não li; um brechó que parecia um labirinto cheio de todo tipo de velharia [desde eletrônicos antigos, xícaras avulsas e velas já queimadas] na Rua Arthur Machado... esse brechó é um mistério para mim e as vezes chego a pensar que ele só existiu em um sonho porque um dia estava lá, no seguinte quando voltei já não o encontrei.

A casa de meu avô foi vendida. Todas as lembranças que aquelas paredes continham agora são memórias. Só minhas. Não sei se tudo será demolido para dar lugar a um prédio moderno, mas aquele lugar não me pertence mais. 

"Minha" casa também não me pertencerá em breve. Após a venda da casa do meu avô, meu pai decidiu comprar uma pra ele e eu não devo me mudar junto. Hora de ir para um lugar novo, recomeçar mais uma vez. Um novo terremoto vai acontecer.

P.S.: Ouvi dizer que a casa do meu avô já foi demolida. No lugar vai surgir um sobrado que vai ser um varejão...



"Chegou à conclusão de que era um monstro, separado do resto da humanidade. Caiu sobre ele uma tristeza tremenda..."